terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A Criação e a Criatura

Quando escrevi “Dona Maria, a Louca”, em 1999, já tinha muito presente a imagem, a personalidade e o talento de uma grande e querida atriz, de recursos diversos e de uma generosidade ímpar. Fui mostrando à minha amiga Berna Sant'Anna o texto, à medida que ia escrevendo, três, quatro páginas por vez, ouvindo-a dizê-lo, sentindo cada entonação, cada acento, cada pausa, as variações da respiração, os silêncios. E lá se foram mais de trinta páginas e um mar imenso de sensações ditas ou suscitadas em um português nem bem de Portugal, nem bem do Brasil, talvez um português “de um tempo límbico”, como definiu a minha amiga de além-mar, Ana Luísa Riquito em um artigo que me enviou. E, confesso, esta escrita dita como quase-oitocentista, impregnada de barroquismos, não foi estudada e decidida metodicamente. Ela mesma se impôs de tal maneira, que mesmo se quisesse, não conseguiria voltar atrás. O lirismo, “as aliterações, os jogos de linguagem, a “rima interna” (como descreve a Ana Riquito), fluíram com a minha condescendência e com o apoio da Ivonete da Silva Souza, que me facilitou o acesso às informações históricas e me repassava antes de todos as primeiras impressões. Mas, saliento, há quem considere estas características um defeito. Considerações que respeito. Então, sob a direção impecável de José Pio Borges e do gênio de Sylvio Mantovani na criação plástica do espetáculo, a “Dona Maria, a Louca” de Berna Sant’Anna se colocou majestosa no gosto e na memória do público catarinense.Anos depois, D. Maria retornou na pele da atriz Marisa Hipólito, em montagem dirigida por Jairo Maciel na cidade de São Paulo. A experiência de ver D. Maria interpretada por uma atriz cega foi instigante. A construção (ou desconstrução) da personagem se apoiava em outras bases, calcada em outras referências, mas ela estava ali, inteira. Marisa emprestou outros olhares à D. Maria.Em 2011, foi a vez de fazer o caminho inverso ao de D. Maria, de cruzar o Atlântico para encontrá-la em casa. Foi uma jornada que se iniciou em 2006, quando recebi o telefonema da Maria do Céu Guerra tecendo comentários e respeito do texto e informando da sua intenção de levá-lo ao palco. Era a voz de D. Maria do outro lado da linha! O texto chegou-lhe às mãos por intermédio do seu amigo, o ator Santos Manuel, que o recebera no Brasil do diretor Celso Nunes. Foram então cinco anos de maturação. Pensei: vai estar tudo pronto, resolvido, pois se trata de uma atriz com uma experiência imensa de palco e de vida. Feliz engano. Ao chegar a Lisboa dei com uma mulher tão múltipla, que transpirava tanta jovialidade e ao mesmo tempo tanta maturidade. Tudo estava vivo, pulsante, fazendo-se e refazendo-se. A insegurança que ela me afirmou ter ao me ver assistindo aos últimos ensaios, só poderia ser a prova de que aquela atriz ainda encarava o seu ofício com o mesmo frescor dos primeiros anos, mas que ao pisar o espaço cênico nos arrebatava com a força avassaladora da criação. (Nas fotos, Berna Santana – 1999)

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Regresso de D.Maria

Na quarta-feira dia 29 regresso ao palco com a minha adorável Maria.Tem-me feito falta o seu convivio.Há dias que sem ela o meu desanimo e a falta do Teatro a que pouco vou porque nem sempre me apetece, levava-me ao mais fundo da provincia alentejana, a meter-me ali, como o meu cão suicida pronto a desistir.
A representação de um monólogo a que damos espaço a toda a nossa capacidade de aprofundar o que é um ser humano incandescente, salva-nos. A Dona Maria de quem estudei a História, a lenda e os relatórios clinicos tem feito mais por mim do que eu por ela. É verdade que o publico sai dali perplexo e surprendido com a força,as contradições, a inteligência e o medo daquela mulher especial que, nem sendo raínha se livrou do anátema de ser mulher no tempo em que viveu. Por isso sinto alguma reciprocidade no que fazemos uma pela outra. Eu mostro-a ao publico. Aos seus portugueses. E ela liberta-me do meu silêncio. A dificuldade que sempre tive de perder tempo com os meus sentimentos,com a análise aprofundada de cada momento de mim, coisas beras que me vieram da vivencia e educação no colégio de freiras e também do desejo permanente de fazer o contrário de uma mãe transparente e confessional, só é resolvida em cena e através da riqueza emocional das figuras por quem me tenho apaixonado. São elas que falam por mim em cada momento, no único lugar onde não se pode mentir - O Palco.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Maria I de Portugal

Por Fernando Rebouças

Maria Francisca Isabel Josefa Antônia Gertrudes Rita Joana, a Maria I de Portugal, nasceu em Lisboa em 17 de dezembro de 1734. Faleceu em 20 de março de 1816, na cidade do Rio de Janeiro; era filha do rei José I e de Dona Mariana Vitória.
Ocupou o trono português de 24 de março de 1777 a 20 de março de 1816. Era chamada de “A Piedosa” por ser uma pessoa de profunda religiosidade. No Brasil, ficou conhecida como Dona Maria, a Louca, devido a sua doença mental que veio a tona após o falecimento de seu primeiro filho.

Casou-se com seu tio Dom Pedro III, assumiu o trono num período conturbado para a Europa, tempos de Revolução Francesa e de novas visões políticas no continente. Ao ocupar o trono, reverteu projetos anteriores: libertou diversos presos e jesuítas (entre eles o bispo de Coimbra, D. Miguel da Anunciação), fundou a Academia Real de Ciências de Lisboa e a Casa da Pia para acolhimento de crianças abandonadas.

Também fundou a Biblioteca Pública de Lisboa, atual Biblioteca Nacional portuguesa. Foi a primeira rainha reinante de Portugal, foi responsável pelo exílio da corte de Marquês de Pombal e pelo período do país conhecido como Viradeira. Concedeu asilo a aristocratas franceses exilados da Revolução Francesa.

Assinou tratado de comércio com a Rússia em 1789 e patrocinou diversas missões culturais e científicas nas colônias portuguesas. Em 5 de janeiro de 1785, promulgou alvará de proibição à atividade industrial no Brasil.

Em virtude de sua doença mental, foi substituída pelo seu filho, Dom João VI em 10 de fevereiro de 1792. Foi tratada por um psiquiatra inglês, Dr. Willis, médico real Jorge III. Piorou depois da morte de seu marido D. Pedro III e filho, o príncipe herdeiro José, falecido em 1788, aos 26 anos no Rio de janeiro.

Fontes:

http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/DoMaria1.html

http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_I_de_Portugal


Data de publicação: 08/12

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

D. Maria A Louca


Artigo de Ana Luísa Riquito (Lisboa)

D. Maria, a Louca, é a peça do dramaturgo brasileiro Antônio Cunha que está em cena no Teatro “A Barraca” e que recomendo.

A acção decorre em 1807, a bordo da nau Príncipe Real que, numa ofegante travessia atlântica,haveria de garantir a fuga da família real às forças napoleónicas e a sobrevivência da Coroa. É uma D. Maria forçada a ser intrépida, temente a Deus e acossada pela geopolítica europeia tanto quanto pela sua insânia, aquela que o seu filho, futuro D. João VI, obrigaria a esperar, antes do desembarque, dois dias e duas noites, sobre as águas da baía de Guanabara. É durante esse tempo límbico e nesse território marítimo, flutuante e instável, que D. Maria se entrega a um exercício de memória, examinando os contornos da sua vida passada e, antecipando, num lampejo de lucidez, a solução da peça conhecida desde a primeira fala: “Brasil! [...] Sei que morrerei em teu ventre seco.”

A partir daqui, o monólogo constitui uma meditação interior, que nos revela uma dupla existência, entre o impudor que a verdadeira solidão autoriza e o sóbrio sentido do dever que o exercício, por direito divino, do mais alto magistério público, então exigia. É D. Maria I e é simplesmente Maria quem nos revela o texto da peça e, entre esses dois pólos, são todas as Marias que o nosso imaginário pressente terem coexistido naquela Rainha de Portugal, a primeira do sexo feminino de um país em que não vigorava a Lei Sálica.

Desde a primeira cena e ao longo de toda a peça,D. Maria surge-nos aterrorizada pela tremenda força telúrica que sabe ser a essência do Brasil. Surge-nos também alucinada, invectivando Bonaparte por entre as lancinantes enxaquecas com que “o Diabo lhe comprime o crânio”. Esta exaltação nervosa é tão mais impressionante quanto a fragilidade da velha senhora é acentuada, nesta fase, pelo seu traje: uma combinação interior despojada, muito simples, translúcida, como se a sua alma sensível estivesse à mercê de ser facilmente trespassada por todas as crueldades do mundo. Só naquelas cenas em que a Maria-pessoa cede o protagonismo a D. Maria I-persona é que Maria do Céu Guerra haverá de envergar o manto real, projectando a voz no exercício do poder, decidindo e oficiando por decreto, sem que, ainda assim, o múnus que lhe fora confiado serevel e menos solitário ou dilacerante.

O monólogo é presenciado por uma aia negra, anã, D. Joaninha, encarnada pelo actor Adérito Lopes, a quem D. Maria se dirige muito intimamente, em confidência, várias vezes de modo maternal e carinhoso.Esta contracena encarnada por uma figura muda, hierática, que se movimenta sobre uma cadeira rolante e, ao contrário da monarca, aparece trajada com uma vistosa indumentária de dama da corte, confronta, ao mesmo tempo que conforta,o desamparo de D. Maria. Por vezes, parece dar-se uma inversão de papéis, como quando D. Joaninha, em pose majestática, sentada na sua cadeira como num trono,faz um sinal de cabeça para que seja a própria rainha a apanhar do chão a mantilha negra do luto de D. José. Em outras ocasiões, ela é simplesmente relegada à sua condição de súbdita, - para mais, de outra raça, - que cumpre as ordens para trazer o urinol à Rainha ou para lhe calçar os escarpins.

Maria do Céu Guerra, representando uma rainha que já estava “oficialmente louca” há 16 anos, alterna um olhar esgazeado e um registo de voz que é quase um “uivo de dor” com apontamentos de conversa mais prosaicos – “A bexiga caiu-me primeiro, o reino depois” - num texto intrinsecamente poético, muitas vezes com um tom aforístico definitivo, e de uma cadência rítmica quase-oitocentista.As metáforas, - “Brasil: garganta de hálito escaldante e olhos de sedição” - as aliterações, os jogos de linguagem, a “rima interna” - “Não me tenhas pena.Não me tenhas presa.”, “Os pensamentos que guardei são, para os simples,segredos. Porém, para mim, são degredos, distâncias de não suportar.” – imprimem a esta tragédia beleza, nobilitam-na, induzem a empatia e a compaixão do espectador.

A vigia redonda da embarcação, - na qual se projecta, em tons cinza, ora um mar remanso so sobrevoado por um pássaro que voga, ora uma boneca, evocando a Maria da infância, - com a sua omnipresença central no cenário, funciona como um “óculo” que, em permanência, está de atalaia à Rainha, num escrutínio constante que a não deixa ser “privada”, descansar, ser leve, pueril, irresponsável. Funciona também como um portal, pelo qual o pensamento se evade e a imaginação se liberta, já que “a loucura não é uma porta que se nos fecha, mas muitas janelas que se nos abrem, só que todas ao mesmo tempo”, diz a protagonista.

É neste cenário que o espectador vai conhecendo:a Maria-filha, devota de seu pai, a Maria-mulher num mundo de homens que a desautorizam com o olhar, a Maria-jovem, secretamente apaixonada, que casa contrariada e por “dever de ofício”, a Maria-mãe, extremosa, pungida pela morte do seu idolatrado primogénito, a Maria-sogra... E também: a D. Maria-beata, a D. Maria-aristocrata com consciência de classe, a D. Maria-clemente, a D.Maria-impotente, perante a supremacia política viril dos conselheiros da Corte...E em todos os registos, Maria do Céu Guerra é magistral: juvenil e cheia de cândida admiração pelo pai, ansiosa, fogosa e revoltada quanto ao seu amor proibido, embevecida pela maternidade, desconfiada quanto a Carlota Joaquina e irredutível na defesa da monarquia.

Com efeito, nesta peça, vemos desfilar uma época em que, porventura mais do que em qualquer outra, na Europa, se digladiavam concepções políticas sobre a organização social extremadas: entre os ideais revolucionários de igualdade e a defesa dos privilégios de casta centenários. O espectador pode, assim, recordar “ao vivo”, episódios marcantes da história de Portugal: a demissão e o exílio da Corte do Marquês de Pombal, a libertação dos presos políticos, a reabilitação dos Távoras, todos símbolos de um período inaugurado pelo Reinado de D. Maria que ficou conhecido como “A Viradeira”, num cognome de conotação ambígua, - ou mesmo, negativa, - por ter correspondido também a uma renovada deferência para com o obscurantismo da Igreja.

Mas é no episódio da execução de Tiradentes, na sequência da revolta da “Inconfidência Mineira”, que a loucura lúcida de que D.Maria vai fazendo prova ao longo de toda a peça atinge o seu paroxismo. A maneira como D. Maria constrói Tiradentes, a forma como o idealiza, tentando encontrar-lhe atenuantes para o crime que lhe valerá a morte, fixa definitivamente aos nossos olhos o terno retrato de uma mulher desvalida,terrena, que compreende os sentimentos e as pessoas, para além do exercício do dever na esfera de governação.

Antônio Cunha imagina, num momento muito emotivo, uma D. Maria que vê em Tiradentes uma reencarnação sucessiva das três figuras que a monarca mais amou e por cuja morte se sente responsável: o jovem Távora, primeiro, que “amou uma Princesa que só podia amá-lo em sonhos” e para ele foi “um triste túmulo”, o rei D. José, seu pai, depois, “morto por real vontade de deixar à filha um Reino”, e o seu filho varão, José, por fim, “muito amado, belo e voluntarioso, a quem levou a peste imunda” que à Rainha estava destinada. Tiradentes acabará por ser a quarta morte que pesará até ao fim da vida na atormentada consciência da Rainha, ainda que perante os seus ministros esta tivesse defendido uma pena mais branda para demonstrar que a piedade é um atributo de todos os que estão convictos da sua realeza.

A propósito de D. Maria I, Mário Domingues[1]haveria de escrever que “a sua débil mão de mulher empunhou o ceptro num dos momentos mais difíceis da história nacional.” E se assim foi, talvez esta grandiosa personagem trágica da nossa história comum com o Brasil, tenha,enfim, encontrado nesta interpretação de Maria do Céu Guerra da peça de Antônio Cunha, o delicado e justo “memorial” que a criação artística e, designadamente a dramaturgia, ainda não lhe dedicara.


[1] “D. Maria I e a sua época”, Lisboa, Romano Torres, 1972, p. 7.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Poemas de Cecília Meirelles sobre D.Maria e a sua Tragédia

Romance da Rainha prisioneira

Ai, a filha da Marianinha!
Ai, a neta do Rei D. João!
- suave princesa de mãos postas,
resplandecente de oração…
Que lindas letras desenhava
a sua delicada mão:
grandes verticais majestosas,
curvas de tanta mansidão!
MARIA – nome de esperança,
MARIA – nome de perdão
- a melancólica princesa
livre de toda ostentação,
que há de subir a um trono amargo,
como todos os tronos são!

A que crescera entre as intrigas
de validos, nobres, criados,
a que conversa com os santos,
a que detestara os pecados!


A que soube de tanto sangue,
por engenhos de altos estrados,
quando a nobreza sucumbia,
nos fidalgos esquartejados!
A que vira o pasmo do povo
e a estupefacção dos soldados…

A que, amarrada em seus protestos,
pusera silenciosos brados
em grandes lágrimas abertas
nos olhos, para o deu voltados…

A que um dia fora aclamada,
envolta em vestes lampejantes,
onde o que não fosse ouro e prata
era de flores de brilhantes…
A que de olhos tristes mirara
paisagens, multidões, semblantes,
sentindo a turba alucinada
em vãos transportes delirantes,
sabendo que reis e reinados
são sempre penosos instantes…
A que em missal e crucifixo
a mão pousara, e aos circunstantes
fizera ouvir seu juramento,
sob estandartes palpitantes!

A que mandara abrir masmorras,
a que desprendera correntes,
a que escutara os condenados
e libertara os inocentes;
a que aos sofredores antigos
levara consolos urgentes;
a que salvava os desvalidos,
a que socorria os doentes;
a que dava a comer aos pobres

com suas próprias mãos clementes;
a que chorava pelas culpas
de seus mortos impenitentes,
e suplicava a deus piedade
para seus ilustres parentes!...

A que se preservara isenta
sobre os desencontros humanos:
sem soldados e sem navios,
entre os irados soberanos
de Espanha, de França e Inglaterra
e os rebeldes americanos
- com os olhos além deste mundo,
nessa evasão de meridianos
que não compreendem os ministros
- e muito menos os tiranos –
de quem vê na terra a falência
de todos os mortais enganos…
a que achava, no ódio, o pecado.
A que achava, na guerra, os danos…

A que tentara erguer-se a esferas
de Arte, de Ciência e Pensamento…
A que ao serviço de seu povo
dedicara cada momento…
A que se acreditara livre
de qualquer decreto sangrento…
- quando os horizontes moviam
grandes ondas de roxo vento;
- quando em cada livro se abriam
outras leis e outros ensinamentos;
- quando o tempo da realeza.
em súbito baque violento,
desabava das guilhotinas,
sobre um grosso mar de tormento.
Ei-la, sem pai, marido, filhos,
confessor, - ninguém – acordada
em seu palácio, à densa noite
erguendo voz desesperada,
perguntando pelos seus mortos,
pela sua ardente morada…
Ei-la a vestir o inferno vivo,
a família toda abrasada,
e os Demónios com rubros garfos,
esperando a sua chegada.
E seu corpo já transparente,
e já dentro dele mais nada.
E os corcéis da Morte e da Guerra
a escumarem na sua escada.

Ei-la, a estender pelas paredes
sua desvairada figura…
A que, embora piedosa e meiga,
pelo poder da desventura,
degredava e matava – longe –
com sua clara assinatura…
Ei-la aos gritos, à sombra verde
dos jardins de aquosa frescura.
Clamam por ela inconfidentes
que a funda masmorra tortura.
E ela clama aos ares esparsos…
E a liberdade que procura
é por flutuantes horizontes,
no fusco império da loucura.

Ai, a neta de D. João Quinto.
filha de D. José Primeiro,
presa em muros de fúria brava,
mais do que qualquer prisioneiro!
-Terras de Angola e Moçambique,
mais doce é o vosso cativeiro!
- Transparentes, vossas paredes,
prisões do Rio de Janeiro!
Ai, que a filha da Marianinha
jaz em cárcere verdadeiro,
sem grade por onde se aviste
esperança, tempo, luzeiro…
Prisão perpétua, exílio estranho,
sem juiz, sentença ou carcereiro…


Romance das exéquias do príncipe

Já plangem todos os sinos,
pelo Príncipe, que é morto.
Como um filho de Rainha
pode assim morrer tão moço?
Dizem que foi de bexigas;
de veneno – dizem outros –
que lhe deram os ministros
para o não verem no trono.
Triste ano para a esperança,
este ano de 88!

Triste ano por estas Minas,
onde existem vários loucos
que do Príncipe esperavam
governo mais a seu gosto:
mações de França e Inglaterra,
libertinos sem decoro,
homens de ideias modernas,
coronéis vigários doutos,
finos ministros e poetas
por que fazem versos e roubos.



Já plangem todos os sinos!
Já repercutem os morros.
(Deus sabe porque se chora,
por que há vestidos de nojo!
O padre que lê Voltério
é que vem pregar ao povo!
Estas minas enganosas
andam cheias de maus sonhos.
Já ninguém quer ser vassalo.
Todos se sentem seus donos!)
Correm avisos nos ares.
Há mistérios, em cada encontro.
O Visconde, em seu palácio,
a fazer ouvidos moucos.
Quem sabe o que andam planeando,
pelas Minas os Mazombos?
A palavra liberdade
vive na boca de todos:
quem não a proclama aos gritos,
murmura-a em tímido sopro.
Já plangem todos os sinos,
Pelo Príncipe, que é morto.
Ó grande melancolia!
Ó profundíssimo assombro!
- Perdida a oportunidade
para qualquer alvoroço.
Lá se foi quem poderia
governar o tempo novo!
Lá se foi com seus poderes,
para mundo sem retorno.

Ai, terras de Vila Rica,
os tempos andam revoltos!
Neste levante das almas,
trabalham sábios e tolos.
Uns avançam com prudência,
outros partem com denodo.
E alguns, de esguelha, calculam,
com finos olhares torvos:
da sorte dos companheiros
fazem seu negócio e jogo.


Já plangem todos os sinos!
Cobri-vos, montes, de roxo!
Calai, mulheres e crianças,
que o vosso é mal sem socorro!
Exéquias hoje rezadas
serão vossas, dentro em pouco.
Morto o Príncipe, já tudo
é loucura e desacordo…
(Perdeu-se a oportunidade,
Neste ano de 88!).

domingo, 12 de fevereiro de 2012

A Basílica da Estrela - Obra da Vida de D.Maria l

Passado o Natal de 1673 de Dezembro uma monja da Ordem da Visitação encontrava-se prostrada em devoção ao Santíssimo Sacramento, como era seu hábito. Por um momento, no silencio da oração, calava-se o barulho do chicote e a agonia do silício que ecoavam entre as paredes grossas do mosteiro, No entanto para a visitandina, que descansava o espírito da paciência e a carne da maceração, nada faria prever o inicio de algo que colocaria para sempre na espiritualidade internacional o sossegado mosteiro de Paray le Monial Perante o olhar pasmado de Margarida Maria Alacoque, a figura de Cristo surge-lhe em toda a sua grandeza, manifestando as maravilhas do seu amor e os segredos do seu Santíssimo Coração proclamando-a discípula predilecta deste culto. Ainda mal refeita da surpresa, a figura de Cristo insere a mão no peito retirando o seu coração vivo, que lhe é apresentado em seguida, nimbado de uma coroa de chamas e radiante como o Sol, envolto da coroa de espinhos e rematado pela Santa Cruz, símbolos do seu martírio pelo amor dos homens. Amor que fora desprezado e que busca amor e reparação.
Dois anos depois, em 1675, Cristo voltaria a revelar-se à monja borgonhesa, pedindo o culto público e a instituição de uma festa reparadora ao seu amor. Intercedendo por aquela que se tornara na sua mais fervorosa discípula, e ao mesmo tempo no instrumento de ver cumprido o seu intento de salvar os homens mediante o seu coração.
Estava assim lançada a primeira pedra no desenvolvimento do culto público ao Santíssimo Coração de Jesus, abrindo um novo capítulo na história da sua veneração – a passagem de um culto privado para um culto público.

Cerca de um século depois das aparições de Pray le Monial, em 1760, celebra-se com grande aparato um casamento na Capela Real da Ajuda, entre o Infante D. Pedro e a Princesa do Brasil Dona Maria Francisca. Coadjuvada pelo seu confessor, a infanta fará um voto ao Santíssimo Coração de Jesus de lhe erguer uma igreja e um convento, para as religiosas reformadas da Regra de Santa Teresa, espelhando o voto feito por D. João V aos monges Arrábidos nos inícios do século, também pedindo o nascimento de uma filho varão. Duas razões inerentes podiam justificar plenamente esta oferta, por um lado, a dedicação a este culto por parte do confessor e, por outro, o de ser este frade, prior do Convento de Santa Teresa de Jesus em Carnide, cenóbio de Carmelitas Descalças onde professavam senhoras da mais alta linhagem e que a princesa visitava frequentemente.
Dois anos depois, em Junho de 1762, as palavras vigorosas do carmelita descalço ecoavam pelas abóbadas da Real Capela da Bemposta, em obséquio pelo nascimento de D. José, Principe do Brasil: “No fim quasi dos séculos veio o mesmo Jesus revelar à Igreja a devoção do seu SANTÍSSIMO CORAÇÃO por meio da VENERÁVEL MARGARIDA DE ALACOQUE, para remédio dos males…
Que chegassem os homens a esquecer-se tanto do CORAÇÃO DE JESUS, que fosse necessário que ele viesse do Ceo lembrar-lhes que não se esqueçam tanto do seu CORAÇÃO!...e por isso não se vio, nem se vê ainda radicada neste devotíssimo Reino a veneração ao CORAÇÃO SANTÍSSIMO DE JESUS, como ele deve, e Jesus quer”.
Frei Inácio de S. Caetano (1719-1788), confessor e orientador espiritual da princesa D. Maria, mais tarde Arcebispo de Tessalónica, confirmava assim a graça do Sagrado Coração de Jesus ao casal real, dando-lhes um herdeiro masculino, de acordo com o voto expresso aquando do casamento na Real Capela da Ajuda.

No entanto, longe estava ainda o andamento da obra, apesar da boa vontade dos príncipes e do carmelita. Para isso contribuíam diversos factores, de ordem económica, técnica e política, Lisboa levantava-se ainda vagarosamente das ruínas do Terramoto, e todos ao meios técnico e económicos estavam ao serviço de Pombal no seu projecto de reconstrução da cidade e do tecido político. Apenas em 1777, com a subida ao trono da infanta Dona Maria Francisca como Maria I, a vontade política da soberana permitiria ultrapassar todos os obstáculos que se colocavam, sobrepondo-se assim às prioridades do anterior reinado. E é já sabido que muito iria mudar a partir daqui.
Desde 1765 que o culto, reexaminado por Clemente XIII, fora finalmente aprovado, tomando o Coração de Cristo como símbolo do seu amor, não apenas convencional mas natural, uma vez que era aí que ele residia juntamente com os outros afectos, apesar dos jansenistas insistirem no significado metafórico e não real do mesmo, posição que só seria oficialmente rejeitada em 1794 pela bula Autorem fidei de Pio VI, precisamente o Papa que autorizaria a dedicação da basílica marina do Sagrado Coração. Juntando-se a isto a subida ao trono da rainha, estavam de facto reunidas as condições para a elevação da grandiosa basílica prometida ao Sagrado Coração de Jesus.
Arranjado o sítio para a sua fundação, importava agora encontrar-se um projecto e um arquitecto que o delineasse. A escolha recaiu sobre Mateus Vicente de Oliveira (1710-1786), naturalmente por recomendação de D. Pedro, pois o mesmo era arquitecto da Casa do Infantado, para além do Priorado do Crato, da Patriarcal e do Senado. Por outro lado, o discípulo de Ludovice, tinha já demonstrado o seu valor na fábrica de Queluz, trabalho que desenvolveu para o infante entre 1747 e 1752, para além de outras obras públicas, como na intervenção em Santo Estêvão de Alfama (1749-52), na reedificação da igreja de Santo António à Sé (desde 1767), muito provavelmente na Igreja de Jesus / Mercês (1760-1770), no desenho de vários retábulos de altar (Tibães), e mais recentemente, encarregado pela rainha de concluir a Igreja de Nossa Senhora do Livramento (Igreja da Memória).

Mateus Vicente
Começa a delinear o seu primeiro projecto logo em 1778, que teria de refazer mais tarde, sendo por fim aprovada a sua segunda versão por Decreto de 31 de Julho de 1779. A 24 de Outubro desse mesmo ano, já as obras se encontrando em avançado estado de adiantamento, teria lugar a cerimónia do lançamento da primeira pedra, para o qual se mandaram cunhar algumas moedas comemorativas que representam numa das faces o desenho do primeiro projecto do arquitecto, e na outra as efigies dos fundadores (Carneiro da Silva, Mengin ou João Figueiredo).
A Equipa teve como encarregado das obras Reinaldo Manuel dos Santos (1740-1790), que a viria a remodelar e a terminar o projecto de Mateus Vicente a partir de 1786, e sendo a administração fiscal e a presidência do Real Erário feita por Anselmo José da Cruz Sobral.
Contava ainda o arquitecto com o apoio do mestre canteiro Cipriano Francisco e do mestre pedreiro Manuel da Silva Gaião.


A partir de 1786 até à data da sagração da Basílica em 1789, parecendo fruto de uma qualquer maldição, começaram a desaparecer, um a um, os principais personagens ligados a este projecto. D. Pedro III e o seu arquitecto preferido morrem nesse mesmo ano. Dois anos depois, seguem-se-lhes o Principe do Brasil D. José e Frei Inácio de São Caetano. E o segundo arquitecto da Estrela, Reinaldo Manuel, em 1789 ou 90, sem talvez ser chegado mesmo a presenciar a conclusão dos trabalhos.

…A estatuária seria entregue aos sucedâneos da escola de Mafra, mais propriamente à oficina de Machado de Castro (1731-1822)…

O programa iconográfico das pinturas começou a ser delineado desde bastante cedo, em 1779, logo após o lançamento da primeira pedra da basílica, tendo para isso sido escolhido o pintor romano Pompeo Batoni (Luca, 1708- Roma, 1787). Entre os responsáveis do programa, encontra-se o Arcebispo de Tessalónica Frei Inácio de S. Caetano, a Rainha D. Maria, e provavelmente as Infantas D. Maria Ana e D. Maria Benedita que haviam pintado já por diversas vezes alguns quadros com o Coração de Jesus e de Maria.
Uma das maiores controvérsias geradas em relação a este assunto reside no facto de o trabalho não ter sido entregue a um pintor nacional, questão que vem sendo discutida desde a chegada dos quadros de Batoni a Portugal. Embora por razões diversas, a Rainha repetia o gesto de D. João V para a Basílica de Mafra, cuja maior parte da decoração pictórica fora executada por artistas de formação romana. Graças ao interregno provocado pelo ministério de Pombal, a formação e fomento artístico desenvolvidos no reinado anterior tinham decaído de maneira vertiginosa. Os artistas, privados das bolsas para estudar em Roma, e de uma escola ou academia no seu próprio país, viram-se obrigados a voltarem para um sistema de aprendizagem oficinal, onde o sistema da cópia de modelos a partir de gravuras se mantinha como o mais corrente. Os poucos artistas que tiveram a sorte de desfrutar de um estágio em Roma, como Inácio de Oliveira Bernardes ou Vieira Lusitano, pousariam para sempre os seus pincéis em 1781, um por morte, o outro por desgosto. No entanto, não faltava aos artistas portugueses ocasião de exprimirem os seus dotes, uma das consequências do Terramoto de 1755, foi o de alargar consideravelmente o mercado de trabalho, e, para quem a isso se dispusesse, facilmente poderia granjear fama e fortuna.

Mas as principais razões que terão motivado a rainha a escolher um pintor romano para as grandes telas da basílica seriam de ordem teológica. Efectivamente, alguns artistas portugueses tiveram oportunidade de colaborar na decoração da igreja, como o famoso Pedro Alexandrino de Carvalho que executou para o tecto da “Casa da Rainha” uma alegoria com a Rainha doando os planos da Basílica a Santa Teresa de Jesus.

De Cirilo Volkmar Machado é também um tecto alusivo à entrega da Basílica à Igreja Romana por D. Maria, e os quatro Doutores na capela-mor. Ao pintor Eleutério Manuel de Barros, que acompanhará o primeiro painel de Batoni para Lisboa em 1782, ser-lhe-á dada a execução de uma tela representando Elias deitando a capa a Eliseu, uma Educação da Virgem por Santa Ana, e uma Ceia em Emáus, cena encomendada a Batoni que não chegaria a ser realizada. Até as princesas D. Maria Ana e D. Maria Benedita tiveram a oportunidade de representar o seu grande quadro com o Anjo Custódio, Miguel Gabriel e Rafael, pintado já em 1789.
Naturalmente que nenhuma destas obras se compara à qualidade do mestre de Luca, mas as razões que levaram à sua escolha foram outras. Para isso, basta relembrar que o culto ao Sagrado Coração era recente, sem grande tradição iconográfica, ainda não aceite por todos e, embora já legitimado, a Bula de Pio VI só sairia em 1794, como vimos. Assim D. Maria, para além de ter conseguido arranjar de Pio VI a autorização para poder erguer uma basílica dedicada a esse culto, primeira igreja do mundo a receber oficialmente esse título sancionado por bula pontifícia, carecia igualmente de aprovação oficial a iconografia prevista para o interior do templo. E foi precisamente isso que aconteceu. De facto, o primeiro quadro enviado por Batoni, terminado em 1781, representando a Consagração do Mundo ao Santíssimo Coração de Jesus, e que se destinava à capela-mor, foi visto e aprovado por Pio VI (que se diz retratado no quadro como figura da igreja) durante uma visita ao estúdio do pintor.
A grande preocupação da rainha sobre as pinturas patenteia-se também na segunda encomenda, gerando graves discussões entre Diogo de Noronha e Batoni, a propósito do quadro Santa Teresa recebendo as ofertas de D. Maria, que viria a ser modificado pelo pintor.

O quadro, bem como outros representando a Última Ceia e a Incredulidade de São Tomé chegaram a Lisboa em 1784, acompanhados pelo gravador Gaspar Fróis Machado. Os três quadros foram então expostos juntamente com o primeiro numa sala do convento das carmelitas, gerando uma enorme polémica. O pintor Joaquim Manuel da Rocha escreveria uma crítica aos quadros, por iniciativa de João Rosado Vilalobos, professor de Retórica e teórica das artes, como refere Cirilo Machado. Esta crítica, contendo algum fundo de verdade, reflecte não apenas o desencanto dos artistas nacionais pela concorrência estrangeira, como espelha a teoria e as ideias estéticas do Portugal dos finais de Setecentos.

Uma das novidades que a Basílica da Estrela aportou a nível internacional foi certamente o importante contributo no desenvolvimento da Iconografia do Sagrado Coração de Jesus, nomeadamente para grandes programas iconográficos, - que preencherá capelas e altares, públicos ou privados, ao longo dos séculos seguintes. Sobretudo, o Sagrado Coração é um símbolo do Amor de Cristo e da caridade, amor e caridade que devem ser reparados pelos homens, pelo que, para além do Coração, surja sempre a ele associado a figura da Caridade. Esta manifesta-se em todas as suas obras, particularmente na Instituição da Eucaristia, onde Cristo reforça o mistério da Encarnação…

Estava assim terminado e cumprido o voto da rainha fruto da sua devoção e vontade, que tudo fez para que se pudesse concretizar, quer no plano económico, como no
técnico, no teológico como no estético. A 15 de Novembro de 1789, apenas dez anos após o lançamento da primeira pedra, era finalmente consagrada a Basílica, enquanto as obras das igrejas da capital se arrastavam ainda indefinidamente, e com elas, a conclusão do projecto político de Pombal para a sua cidade iluminada.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A Obra ao Rubro

A “delirante” criação de um espectáculo louco

Entusiasta como actriz pela forma monologal por tudo o que ela exige e sugere, e estimulada por resultados anteriores em obras unipessoais como Calamity Jane, Pranto de Maria Parda, etc. dediquei meses a estudar a loucura de D. Maria a sua vida e o difícil e belo texto de António Cunha que se aproxima, sem prejuízo da claridade indispensável ao texto teatral, da escrita oitocentista. Gostei do facto de esta ser uma loucura mais narrada do que vivida o que permite ao jogo do actor um permanente vai e vem interpretativo.
Desta vez não é uma marginal no Selvagem Oeste, nem uma alcoólica perdida na Lisboa de quinhentos. É uma Rainha. Mas é também uma mulher sozinha no mundo dos homens. E é uma louca. Excluída do mundo dos vivos 24 anos antes de morrer.
Mas incandescente e lúcida como a Loucura.

Em Alquimia diz-se que a matéria-prima tem um corpo imperfeito, uma alma constante e uma cor penetrante. E uma das grandes dificuldades que apresenta a alquimia consiste em identificar essa matéria -prima. Mas eu sei que essa matéria é o Actor. Alguns actores que buscam que neles se dê o processo cujo caminho sigiloso nem eles próprios conhecem totalmente. Eis-me mais uma vez na caminhada constante rumo à imperfeição. Caminhada hermética de mim para uma outra vida, que de início me é contada numa história, que se prende com a História, que se prende com um texto literário. Trazer ao Palco alguém que existiu é uma tarefa assustadora. Trazer ao palco alguém que existiu e que enlouqueceu mais assustador ainda. Quando é que se começa a enlouquecer? Como se perde um pássaro? Como diz Sam Shepard.
António Cunha deu-me acesso a uma aventura estranha. Ele pôs-me nas mãos uma personagem louca que fala quase sempre com uma luminosa lucidez. O modo de falar esse sim foge à norma, e o desequilíbrio emocional é total. Mas o Tempo vai e vem com nitidez e a memória não se confunde. Ou seja confunde-se uma vez, na maravilhosa sobreposição que na rainha se opera com os homens da sua vida e as suas culpas e as suas mortes. Mas não estamos perante o que se chama em literatura um” texto louco” porque embora a personagem fale em nome próprio, o Autor goza de uma invejável saúde mental e usou-a em absoluto nesta obra. E é aqui que consiste para mim o primeiro desafio: contar, de uma forma não cartesiana o que o texto me propõe com o seu desenrolar pendular entre presente e passado. Deixar a personagem viajar no texto (totalmente respeitado aliás) sem fracturas nítidas. Como “as vagas no mar”. E assim os tempos confundem-se, não excessivamente, para respeitar a inteligibilidade, e os sentimentos também se confundem. O flash-back nunca é nítido. O mar varre na mesma onda passado e presente.
O segundo desafio também tem a ver com a Alquimia. Como para mim todo o Teatro. E chegamos ao Homúnculo. A aia Joaninha. Negróide, anã, fiel e indefinida foi criada por nós a partir de um nome por quem Dona Maria insistentemente chamava, suplicava, repreendia. Esta aia existiu de facto e o espectáculo transformou-a numa espécie de criado-mudo, de enorme significação teatral. Alterou completamente o jogo cénico, focando a Rainha e o público num presente que atravessa o passado e se deixa atravessar por ele. Dando-lhe ternura, conflito e menos racionalidade. Claro que não posso deixar de pensar em Lear com o seu Bobo arquétipo maior do Teatro . Quando os Reis deixam de ser reis.

Para que este espectáculo fosse verdadeiramente o rio de ouro e esmeraldas, que sonhei que ele fosse, já que se trata de um exigentíssimo exercício de actor, tive o cuidado de o fazer apenas com ouro de lei. Cada elemento que nele participou foi condição indispensável para ele ser o que é: um momento de incomparável felicidade e entendimento numa a sua sinceridade, a sua inteligência e o seu desassombro, que acompanhou com olhar benevolente mas critico todo o desenrolar da criação, e com humor e disponibilidade foi inventando a nossa Joaninha. Depois a Marta Soares atenta na sua impecável assistência voluntária. E o Helder Costa sempre pronto a estar junto e ajudar com o olhar de quem estudou e reestudou a matéria, mas não pretende monopolizá-la. E o Luis Viegas que eu quis que pintasse de luz este trabalho como já o fez amorosamente com tantos outros, e que sempre me trouxe calor ao palco, calor bom, belo inventivo e sabedor. E o mais sensível mestre de carpintaria e pintura Mário Dias, também forever. E claro a equipa dos que estarão a operar som e luz Ricardo Santos e Fernando Belo, e o escritório sem o qual nada anda, donde quero destacar o talento gráfico de Inês Costa e a paciência da Zi. E ainda alguns recentes colaboradores de quem fica a vontade de mais.
E por fim José Costa Reis. O mais sabedor, amável e talentoso figurinista. Trabalhar com ele é como se fossemos crianças e estivéssemos a brincar. Com a seriedade das crianças. E eu que adoro cenógrafos porque eles podem trazer-me para o palco o quarto de brinquedos que já não tenho (ou tenho?), adoro a sua leveza. E o seu gosto por experimentar. E eu que pertenço a uma geração que declarou guerra ao glamour gostaria, para compensar, ter sempre o Zé Manel ao pé de mim.

Maria do Céu Guerra

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

D.Maria a Louca na Barraca

D. Maria não foi a única cabeça coroada a perder a razão em Portugal. Mas foi a primeira mulher a reinar nosso país. E isto faz dela talvez uma das mais martirizadas e comoventes figuras da nossa História.
Entalada entre uma Igreja a querer recuperar depressa dos danos causados pelo rei D José e uma obediência que ela desejava que fosse absoluta à memória do pai, a melancólica e piedosa rainha sucumbia de hesitação. Abalada por uma sucessão de mortes que ceifou filhos, pais, netos, marido, e o primeiro e tranquilizante confessor Arcebispo de Tessalónica, que lhe pacificava os temores religiosos, Maria viu-se entregue a um sem número de pressões a que não resistiu.
Praticamente fechada em Queluz entre 1792, data em que à saída de um Teatro em Salvaterra de Magos, se tornou publica a sua insanidade, e 1807 data em que a Corte Portuguesa foi para o Brasil, a pobre rainha deslocava-se apenas de Convento para Convento numa carruagem onde uma sonora guizalhada aí colocada para o efeito, lhe ocultava os gritos e os protestos. Frequentemente era instada a assinar despachos de que discordava ou que, pelo menos, não tinha a certeza de querer assinar. Até que ao passar a regência do reino para o príncipe D. João seu filho, pode finalmente entregar-se à sua dor.
Hereditariedade, consanguinidade, remorso, pressão religiosa, desgosto, perda…muitas são as causas atribuídas à “loucura” de Dona Maria. Ultimamente levanta-se a hipótese de envenenamento devido à prolongada inspiração de elementos tóxicos como bismuto e arsénico, existentes no papel em que trabalhava. Digo trabalhava porque D. Maria reinou de facto e no seu gabinete do Carmelo, pequeno Convento contíguo à sua Basílica da Estrela, tentou sem êxito mas com boa-fé, principalmente no campo da educação e da ciência, equilibrar a herança racionalista de seu pai com o beatério que a igreja lhe impunha a troco de lhe salvar a alma. Enquanto ia enlouquecendo devagar pensa-se que a Rainha falante discorria bem, mas sentia mal. O seu desequilíbrio, principalmente emocional, era parecido com o de Jorge III de Inglaterra, que acabou por morrer de síncope depois de ter falado ininterruptamente dois dias seguidos. Por isso o regente e o embaixador português em Inglaterra trouxeram a Portugal o proto-psicanalista Dr.Willis que obtivera melhoras assinaláveis no tratamento do rei inglês. Impossibilitado pela corte de levar D. Maria para a sua quinta terapêutica o clínico abandonou o Palácio das Necessidades onde esteve hospedado e regressou a Londres.
Por todo o país se organizaram procissões pelas melhoras da Rainha.

E agora partamos para a peça a estrear na Barraca no dia 20 de Julho próximo.
O autor António Cunha, de Santa Catarina no Brasil, trabalhou em parceria com a historiadora Ivonete da Silva Sousa na pesquisa histórica sobre D. Maria I e o seu tempo e no tema da loucura. Apoiados essencialmente no pensamento de Michel Foucault.
E criou uma heroína, heroína bufa por vezes, mas sempre grandiosa, na euforia ou na dor.
Cruzando espaços e tempos a história da Rainha louca desenvolve-se em quatro momentos: o casamento com o velho tio D. Pedro que a fez abdicar de um mais verdadeiro e juvenil amor, a morte do pai D. José cujo trono virá a ocupar, a morte do filho que esperava que viesse a ser o rei e morreu de peste por não ter sido vacinado a conselho religioso. Todas estas perdas e falhas vêm a ganhar substância na morte de Tiradentes cuja execução, pressionada, ela acaba por assinar.
Estamos na baía de Guanabara. Dona Maria não desembarcou com a restante corte. Tinha feito demasiados “desacatos” no embarque para que o filho D. João, quisesse apresentá-la a seu lado e correr o risco de tornar ainda mais patético aquela chegada.
D. Maria I espera no barco com a sua aia dona Joaninha, que as venham buscar.
Um dia? Uma noite? Dois dias? Uma longa noite? Em qualquer caso uma vida.

Passo a citar o autor Antonio Cunha “o texto, em forma de monólogo, desenvolve-se a partir desse momento crucial. Aos 74 anos, a velha soberana aporta em terras tão longínquas quanto para si estranhas. (…) A visão dantesca do Brasil que Dona Maria constrói a partir da janela do seu camarote remonta à visão dos primeiros colonizadores, e que, resguardada a distância dos 300 anos que os separam, pouco mesmo teria evoluído. Presa na teia das concepções em voga, Dona Maria, por vezes, enquadra o Brasil que está à sua frente nas mesmas categorias que utilizam os seus contemporâneos para a ela mesma enquadrar. Dona Maria vê estranheza, desordem, insanidade diante de si, da mesma forma como vêm os seus súbditos quando diante dela. Para Dona Maria “a louca”, o mundo que ora se lhe apresenta é instigantemente “louco”. Neste cenário onde, solitária e distante das regras que permeiam a sua condição de monarca, espectadora privilegiada e ao mesmo tempo personagem principal, Dona Maria revisita a sua própria vida – e aqui o texto busca destacar factos que considerou mais relevantes na sua historiografia (…) A acção dramática está centrada no movimento pendular, em que se alternam e se confundem lembranças do passado ao inusitado presente, fruto do que poderíamos chamar de disponibilidade mental, emocional e espiritual da nossa personagem. Por assim dizer, a “loucura” de Dona Maria permitiu-nos alçar voos, possibilitou-nos licenças poéticas. Na obra de Michel Foucault, “História da Loucura”, buscamos suporte teórico para desenvolver o perfil psicológico de Dona Maria, que nada mais é do que o perfil daquela sociedade alucinada e temerosa diante das mudanças que se impunham impiedosas…”

Maria do Céu Guerra

Sobre a D.Maria...