domingo, 12 de fevereiro de 2012

A Basílica da Estrela - Obra da Vida de D.Maria l

Passado o Natal de 1673 de Dezembro uma monja da Ordem da Visitação encontrava-se prostrada em devoção ao Santíssimo Sacramento, como era seu hábito. Por um momento, no silencio da oração, calava-se o barulho do chicote e a agonia do silício que ecoavam entre as paredes grossas do mosteiro, No entanto para a visitandina, que descansava o espírito da paciência e a carne da maceração, nada faria prever o inicio de algo que colocaria para sempre na espiritualidade internacional o sossegado mosteiro de Paray le Monial Perante o olhar pasmado de Margarida Maria Alacoque, a figura de Cristo surge-lhe em toda a sua grandeza, manifestando as maravilhas do seu amor e os segredos do seu Santíssimo Coração proclamando-a discípula predilecta deste culto. Ainda mal refeita da surpresa, a figura de Cristo insere a mão no peito retirando o seu coração vivo, que lhe é apresentado em seguida, nimbado de uma coroa de chamas e radiante como o Sol, envolto da coroa de espinhos e rematado pela Santa Cruz, símbolos do seu martírio pelo amor dos homens. Amor que fora desprezado e que busca amor e reparação.
Dois anos depois, em 1675, Cristo voltaria a revelar-se à monja borgonhesa, pedindo o culto público e a instituição de uma festa reparadora ao seu amor. Intercedendo por aquela que se tornara na sua mais fervorosa discípula, e ao mesmo tempo no instrumento de ver cumprido o seu intento de salvar os homens mediante o seu coração.
Estava assim lançada a primeira pedra no desenvolvimento do culto público ao Santíssimo Coração de Jesus, abrindo um novo capítulo na história da sua veneração – a passagem de um culto privado para um culto público.

Cerca de um século depois das aparições de Pray le Monial, em 1760, celebra-se com grande aparato um casamento na Capela Real da Ajuda, entre o Infante D. Pedro e a Princesa do Brasil Dona Maria Francisca. Coadjuvada pelo seu confessor, a infanta fará um voto ao Santíssimo Coração de Jesus de lhe erguer uma igreja e um convento, para as religiosas reformadas da Regra de Santa Teresa, espelhando o voto feito por D. João V aos monges Arrábidos nos inícios do século, também pedindo o nascimento de uma filho varão. Duas razões inerentes podiam justificar plenamente esta oferta, por um lado, a dedicação a este culto por parte do confessor e, por outro, o de ser este frade, prior do Convento de Santa Teresa de Jesus em Carnide, cenóbio de Carmelitas Descalças onde professavam senhoras da mais alta linhagem e que a princesa visitava frequentemente.
Dois anos depois, em Junho de 1762, as palavras vigorosas do carmelita descalço ecoavam pelas abóbadas da Real Capela da Bemposta, em obséquio pelo nascimento de D. José, Principe do Brasil: “No fim quasi dos séculos veio o mesmo Jesus revelar à Igreja a devoção do seu SANTÍSSIMO CORAÇÃO por meio da VENERÁVEL MARGARIDA DE ALACOQUE, para remédio dos males…
Que chegassem os homens a esquecer-se tanto do CORAÇÃO DE JESUS, que fosse necessário que ele viesse do Ceo lembrar-lhes que não se esqueçam tanto do seu CORAÇÃO!...e por isso não se vio, nem se vê ainda radicada neste devotíssimo Reino a veneração ao CORAÇÃO SANTÍSSIMO DE JESUS, como ele deve, e Jesus quer”.
Frei Inácio de S. Caetano (1719-1788), confessor e orientador espiritual da princesa D. Maria, mais tarde Arcebispo de Tessalónica, confirmava assim a graça do Sagrado Coração de Jesus ao casal real, dando-lhes um herdeiro masculino, de acordo com o voto expresso aquando do casamento na Real Capela da Ajuda.

No entanto, longe estava ainda o andamento da obra, apesar da boa vontade dos príncipes e do carmelita. Para isso contribuíam diversos factores, de ordem económica, técnica e política, Lisboa levantava-se ainda vagarosamente das ruínas do Terramoto, e todos ao meios técnico e económicos estavam ao serviço de Pombal no seu projecto de reconstrução da cidade e do tecido político. Apenas em 1777, com a subida ao trono da infanta Dona Maria Francisca como Maria I, a vontade política da soberana permitiria ultrapassar todos os obstáculos que se colocavam, sobrepondo-se assim às prioridades do anterior reinado. E é já sabido que muito iria mudar a partir daqui.
Desde 1765 que o culto, reexaminado por Clemente XIII, fora finalmente aprovado, tomando o Coração de Cristo como símbolo do seu amor, não apenas convencional mas natural, uma vez que era aí que ele residia juntamente com os outros afectos, apesar dos jansenistas insistirem no significado metafórico e não real do mesmo, posição que só seria oficialmente rejeitada em 1794 pela bula Autorem fidei de Pio VI, precisamente o Papa que autorizaria a dedicação da basílica marina do Sagrado Coração. Juntando-se a isto a subida ao trono da rainha, estavam de facto reunidas as condições para a elevação da grandiosa basílica prometida ao Sagrado Coração de Jesus.
Arranjado o sítio para a sua fundação, importava agora encontrar-se um projecto e um arquitecto que o delineasse. A escolha recaiu sobre Mateus Vicente de Oliveira (1710-1786), naturalmente por recomendação de D. Pedro, pois o mesmo era arquitecto da Casa do Infantado, para além do Priorado do Crato, da Patriarcal e do Senado. Por outro lado, o discípulo de Ludovice, tinha já demonstrado o seu valor na fábrica de Queluz, trabalho que desenvolveu para o infante entre 1747 e 1752, para além de outras obras públicas, como na intervenção em Santo Estêvão de Alfama (1749-52), na reedificação da igreja de Santo António à Sé (desde 1767), muito provavelmente na Igreja de Jesus / Mercês (1760-1770), no desenho de vários retábulos de altar (Tibães), e mais recentemente, encarregado pela rainha de concluir a Igreja de Nossa Senhora do Livramento (Igreja da Memória).

Mateus Vicente
Começa a delinear o seu primeiro projecto logo em 1778, que teria de refazer mais tarde, sendo por fim aprovada a sua segunda versão por Decreto de 31 de Julho de 1779. A 24 de Outubro desse mesmo ano, já as obras se encontrando em avançado estado de adiantamento, teria lugar a cerimónia do lançamento da primeira pedra, para o qual se mandaram cunhar algumas moedas comemorativas que representam numa das faces o desenho do primeiro projecto do arquitecto, e na outra as efigies dos fundadores (Carneiro da Silva, Mengin ou João Figueiredo).
A Equipa teve como encarregado das obras Reinaldo Manuel dos Santos (1740-1790), que a viria a remodelar e a terminar o projecto de Mateus Vicente a partir de 1786, e sendo a administração fiscal e a presidência do Real Erário feita por Anselmo José da Cruz Sobral.
Contava ainda o arquitecto com o apoio do mestre canteiro Cipriano Francisco e do mestre pedreiro Manuel da Silva Gaião.


A partir de 1786 até à data da sagração da Basílica em 1789, parecendo fruto de uma qualquer maldição, começaram a desaparecer, um a um, os principais personagens ligados a este projecto. D. Pedro III e o seu arquitecto preferido morrem nesse mesmo ano. Dois anos depois, seguem-se-lhes o Principe do Brasil D. José e Frei Inácio de São Caetano. E o segundo arquitecto da Estrela, Reinaldo Manuel, em 1789 ou 90, sem talvez ser chegado mesmo a presenciar a conclusão dos trabalhos.

…A estatuária seria entregue aos sucedâneos da escola de Mafra, mais propriamente à oficina de Machado de Castro (1731-1822)…

O programa iconográfico das pinturas começou a ser delineado desde bastante cedo, em 1779, logo após o lançamento da primeira pedra da basílica, tendo para isso sido escolhido o pintor romano Pompeo Batoni (Luca, 1708- Roma, 1787). Entre os responsáveis do programa, encontra-se o Arcebispo de Tessalónica Frei Inácio de S. Caetano, a Rainha D. Maria, e provavelmente as Infantas D. Maria Ana e D. Maria Benedita que haviam pintado já por diversas vezes alguns quadros com o Coração de Jesus e de Maria.
Uma das maiores controvérsias geradas em relação a este assunto reside no facto de o trabalho não ter sido entregue a um pintor nacional, questão que vem sendo discutida desde a chegada dos quadros de Batoni a Portugal. Embora por razões diversas, a Rainha repetia o gesto de D. João V para a Basílica de Mafra, cuja maior parte da decoração pictórica fora executada por artistas de formação romana. Graças ao interregno provocado pelo ministério de Pombal, a formação e fomento artístico desenvolvidos no reinado anterior tinham decaído de maneira vertiginosa. Os artistas, privados das bolsas para estudar em Roma, e de uma escola ou academia no seu próprio país, viram-se obrigados a voltarem para um sistema de aprendizagem oficinal, onde o sistema da cópia de modelos a partir de gravuras se mantinha como o mais corrente. Os poucos artistas que tiveram a sorte de desfrutar de um estágio em Roma, como Inácio de Oliveira Bernardes ou Vieira Lusitano, pousariam para sempre os seus pincéis em 1781, um por morte, o outro por desgosto. No entanto, não faltava aos artistas portugueses ocasião de exprimirem os seus dotes, uma das consequências do Terramoto de 1755, foi o de alargar consideravelmente o mercado de trabalho, e, para quem a isso se dispusesse, facilmente poderia granjear fama e fortuna.

Mas as principais razões que terão motivado a rainha a escolher um pintor romano para as grandes telas da basílica seriam de ordem teológica. Efectivamente, alguns artistas portugueses tiveram oportunidade de colaborar na decoração da igreja, como o famoso Pedro Alexandrino de Carvalho que executou para o tecto da “Casa da Rainha” uma alegoria com a Rainha doando os planos da Basílica a Santa Teresa de Jesus.

De Cirilo Volkmar Machado é também um tecto alusivo à entrega da Basílica à Igreja Romana por D. Maria, e os quatro Doutores na capela-mor. Ao pintor Eleutério Manuel de Barros, que acompanhará o primeiro painel de Batoni para Lisboa em 1782, ser-lhe-á dada a execução de uma tela representando Elias deitando a capa a Eliseu, uma Educação da Virgem por Santa Ana, e uma Ceia em Emáus, cena encomendada a Batoni que não chegaria a ser realizada. Até as princesas D. Maria Ana e D. Maria Benedita tiveram a oportunidade de representar o seu grande quadro com o Anjo Custódio, Miguel Gabriel e Rafael, pintado já em 1789.
Naturalmente que nenhuma destas obras se compara à qualidade do mestre de Luca, mas as razões que levaram à sua escolha foram outras. Para isso, basta relembrar que o culto ao Sagrado Coração era recente, sem grande tradição iconográfica, ainda não aceite por todos e, embora já legitimado, a Bula de Pio VI só sairia em 1794, como vimos. Assim D. Maria, para além de ter conseguido arranjar de Pio VI a autorização para poder erguer uma basílica dedicada a esse culto, primeira igreja do mundo a receber oficialmente esse título sancionado por bula pontifícia, carecia igualmente de aprovação oficial a iconografia prevista para o interior do templo. E foi precisamente isso que aconteceu. De facto, o primeiro quadro enviado por Batoni, terminado em 1781, representando a Consagração do Mundo ao Santíssimo Coração de Jesus, e que se destinava à capela-mor, foi visto e aprovado por Pio VI (que se diz retratado no quadro como figura da igreja) durante uma visita ao estúdio do pintor.
A grande preocupação da rainha sobre as pinturas patenteia-se também na segunda encomenda, gerando graves discussões entre Diogo de Noronha e Batoni, a propósito do quadro Santa Teresa recebendo as ofertas de D. Maria, que viria a ser modificado pelo pintor.

O quadro, bem como outros representando a Última Ceia e a Incredulidade de São Tomé chegaram a Lisboa em 1784, acompanhados pelo gravador Gaspar Fróis Machado. Os três quadros foram então expostos juntamente com o primeiro numa sala do convento das carmelitas, gerando uma enorme polémica. O pintor Joaquim Manuel da Rocha escreveria uma crítica aos quadros, por iniciativa de João Rosado Vilalobos, professor de Retórica e teórica das artes, como refere Cirilo Machado. Esta crítica, contendo algum fundo de verdade, reflecte não apenas o desencanto dos artistas nacionais pela concorrência estrangeira, como espelha a teoria e as ideias estéticas do Portugal dos finais de Setecentos.

Uma das novidades que a Basílica da Estrela aportou a nível internacional foi certamente o importante contributo no desenvolvimento da Iconografia do Sagrado Coração de Jesus, nomeadamente para grandes programas iconográficos, - que preencherá capelas e altares, públicos ou privados, ao longo dos séculos seguintes. Sobretudo, o Sagrado Coração é um símbolo do Amor de Cristo e da caridade, amor e caridade que devem ser reparados pelos homens, pelo que, para além do Coração, surja sempre a ele associado a figura da Caridade. Esta manifesta-se em todas as suas obras, particularmente na Instituição da Eucaristia, onde Cristo reforça o mistério da Encarnação…

Estava assim terminado e cumprido o voto da rainha fruto da sua devoção e vontade, que tudo fez para que se pudesse concretizar, quer no plano económico, como no
técnico, no teológico como no estético. A 15 de Novembro de 1789, apenas dez anos após o lançamento da primeira pedra, era finalmente consagrada a Basílica, enquanto as obras das igrejas da capital se arrastavam ainda indefinidamente, e com elas, a conclusão do projecto político de Pombal para a sua cidade iluminada.

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