sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A Obra ao Rubro

A “delirante” criação de um espectáculo louco

Entusiasta como actriz pela forma monologal por tudo o que ela exige e sugere, e estimulada por resultados anteriores em obras unipessoais como Calamity Jane, Pranto de Maria Parda, etc. dediquei meses a estudar a loucura de D. Maria a sua vida e o difícil e belo texto de António Cunha que se aproxima, sem prejuízo da claridade indispensável ao texto teatral, da escrita oitocentista. Gostei do facto de esta ser uma loucura mais narrada do que vivida o que permite ao jogo do actor um permanente vai e vem interpretativo.
Desta vez não é uma marginal no Selvagem Oeste, nem uma alcoólica perdida na Lisboa de quinhentos. É uma Rainha. Mas é também uma mulher sozinha no mundo dos homens. E é uma louca. Excluída do mundo dos vivos 24 anos antes de morrer.
Mas incandescente e lúcida como a Loucura.

Em Alquimia diz-se que a matéria-prima tem um corpo imperfeito, uma alma constante e uma cor penetrante. E uma das grandes dificuldades que apresenta a alquimia consiste em identificar essa matéria -prima. Mas eu sei que essa matéria é o Actor. Alguns actores que buscam que neles se dê o processo cujo caminho sigiloso nem eles próprios conhecem totalmente. Eis-me mais uma vez na caminhada constante rumo à imperfeição. Caminhada hermética de mim para uma outra vida, que de início me é contada numa história, que se prende com a História, que se prende com um texto literário. Trazer ao Palco alguém que existiu é uma tarefa assustadora. Trazer ao palco alguém que existiu e que enlouqueceu mais assustador ainda. Quando é que se começa a enlouquecer? Como se perde um pássaro? Como diz Sam Shepard.
António Cunha deu-me acesso a uma aventura estranha. Ele pôs-me nas mãos uma personagem louca que fala quase sempre com uma luminosa lucidez. O modo de falar esse sim foge à norma, e o desequilíbrio emocional é total. Mas o Tempo vai e vem com nitidez e a memória não se confunde. Ou seja confunde-se uma vez, na maravilhosa sobreposição que na rainha se opera com os homens da sua vida e as suas culpas e as suas mortes. Mas não estamos perante o que se chama em literatura um” texto louco” porque embora a personagem fale em nome próprio, o Autor goza de uma invejável saúde mental e usou-a em absoluto nesta obra. E é aqui que consiste para mim o primeiro desafio: contar, de uma forma não cartesiana o que o texto me propõe com o seu desenrolar pendular entre presente e passado. Deixar a personagem viajar no texto (totalmente respeitado aliás) sem fracturas nítidas. Como “as vagas no mar”. E assim os tempos confundem-se, não excessivamente, para respeitar a inteligibilidade, e os sentimentos também se confundem. O flash-back nunca é nítido. O mar varre na mesma onda passado e presente.
O segundo desafio também tem a ver com a Alquimia. Como para mim todo o Teatro. E chegamos ao Homúnculo. A aia Joaninha. Negróide, anã, fiel e indefinida foi criada por nós a partir de um nome por quem Dona Maria insistentemente chamava, suplicava, repreendia. Esta aia existiu de facto e o espectáculo transformou-a numa espécie de criado-mudo, de enorme significação teatral. Alterou completamente o jogo cénico, focando a Rainha e o público num presente que atravessa o passado e se deixa atravessar por ele. Dando-lhe ternura, conflito e menos racionalidade. Claro que não posso deixar de pensar em Lear com o seu Bobo arquétipo maior do Teatro . Quando os Reis deixam de ser reis.

Para que este espectáculo fosse verdadeiramente o rio de ouro e esmeraldas, que sonhei que ele fosse, já que se trata de um exigentíssimo exercício de actor, tive o cuidado de o fazer apenas com ouro de lei. Cada elemento que nele participou foi condição indispensável para ele ser o que é: um momento de incomparável felicidade e entendimento numa a sua sinceridade, a sua inteligência e o seu desassombro, que acompanhou com olhar benevolente mas critico todo o desenrolar da criação, e com humor e disponibilidade foi inventando a nossa Joaninha. Depois a Marta Soares atenta na sua impecável assistência voluntária. E o Helder Costa sempre pronto a estar junto e ajudar com o olhar de quem estudou e reestudou a matéria, mas não pretende monopolizá-la. E o Luis Viegas que eu quis que pintasse de luz este trabalho como já o fez amorosamente com tantos outros, e que sempre me trouxe calor ao palco, calor bom, belo inventivo e sabedor. E o mais sensível mestre de carpintaria e pintura Mário Dias, também forever. E claro a equipa dos que estarão a operar som e luz Ricardo Santos e Fernando Belo, e o escritório sem o qual nada anda, donde quero destacar o talento gráfico de Inês Costa e a paciência da Zi. E ainda alguns recentes colaboradores de quem fica a vontade de mais.
E por fim José Costa Reis. O mais sabedor, amável e talentoso figurinista. Trabalhar com ele é como se fossemos crianças e estivéssemos a brincar. Com a seriedade das crianças. E eu que adoro cenógrafos porque eles podem trazer-me para o palco o quarto de brinquedos que já não tenho (ou tenho?), adoro a sua leveza. E o seu gosto por experimentar. E eu que pertenço a uma geração que declarou guerra ao glamour gostaria, para compensar, ter sempre o Zé Manel ao pé de mim.

Maria do Céu Guerra

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