terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A Criação e a Criatura

Quando escrevi “Dona Maria, a Louca”, em 1999, já tinha muito presente a imagem, a personalidade e o talento de uma grande e querida atriz, de recursos diversos e de uma generosidade ímpar. Fui mostrando à minha amiga Berna Sant'Anna o texto, à medida que ia escrevendo, três, quatro páginas por vez, ouvindo-a dizê-lo, sentindo cada entonação, cada acento, cada pausa, as variações da respiração, os silêncios. E lá se foram mais de trinta páginas e um mar imenso de sensações ditas ou suscitadas em um português nem bem de Portugal, nem bem do Brasil, talvez um português “de um tempo límbico”, como definiu a minha amiga de além-mar, Ana Luísa Riquito em um artigo que me enviou. E, confesso, esta escrita dita como quase-oitocentista, impregnada de barroquismos, não foi estudada e decidida metodicamente. Ela mesma se impôs de tal maneira, que mesmo se quisesse, não conseguiria voltar atrás. O lirismo, “as aliterações, os jogos de linguagem, a “rima interna” (como descreve a Ana Riquito), fluíram com a minha condescendência e com o apoio da Ivonete da Silva Souza, que me facilitou o acesso às informações históricas e me repassava antes de todos as primeiras impressões. Mas, saliento, há quem considere estas características um defeito. Considerações que respeito. Então, sob a direção impecável de José Pio Borges e do gênio de Sylvio Mantovani na criação plástica do espetáculo, a “Dona Maria, a Louca” de Berna Sant’Anna se colocou majestosa no gosto e na memória do público catarinense.Anos depois, D. Maria retornou na pele da atriz Marisa Hipólito, em montagem dirigida por Jairo Maciel na cidade de São Paulo. A experiência de ver D. Maria interpretada por uma atriz cega foi instigante. A construção (ou desconstrução) da personagem se apoiava em outras bases, calcada em outras referências, mas ela estava ali, inteira. Marisa emprestou outros olhares à D. Maria.Em 2011, foi a vez de fazer o caminho inverso ao de D. Maria, de cruzar o Atlântico para encontrá-la em casa. Foi uma jornada que se iniciou em 2006, quando recebi o telefonema da Maria do Céu Guerra tecendo comentários e respeito do texto e informando da sua intenção de levá-lo ao palco. Era a voz de D. Maria do outro lado da linha! O texto chegou-lhe às mãos por intermédio do seu amigo, o ator Santos Manuel, que o recebera no Brasil do diretor Celso Nunes. Foram então cinco anos de maturação. Pensei: vai estar tudo pronto, resolvido, pois se trata de uma atriz com uma experiência imensa de palco e de vida. Feliz engano. Ao chegar a Lisboa dei com uma mulher tão múltipla, que transpirava tanta jovialidade e ao mesmo tempo tanta maturidade. Tudo estava vivo, pulsante, fazendo-se e refazendo-se. A insegurança que ela me afirmou ter ao me ver assistindo aos últimos ensaios, só poderia ser a prova de que aquela atriz ainda encarava o seu ofício com o mesmo frescor dos primeiros anos, mas que ao pisar o espaço cênico nos arrebatava com a força avassaladora da criação. (Nas fotos, Berna Santana – 1999)

Sem comentários:

Enviar um comentário