quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

D. Maria A Louca


Artigo de Ana Luísa Riquito (Lisboa)

D. Maria, a Louca, é a peça do dramaturgo brasileiro Antônio Cunha que está em cena no Teatro “A Barraca” e que recomendo.

A acção decorre em 1807, a bordo da nau Príncipe Real que, numa ofegante travessia atlântica,haveria de garantir a fuga da família real às forças napoleónicas e a sobrevivência da Coroa. É uma D. Maria forçada a ser intrépida, temente a Deus e acossada pela geopolítica europeia tanto quanto pela sua insânia, aquela que o seu filho, futuro D. João VI, obrigaria a esperar, antes do desembarque, dois dias e duas noites, sobre as águas da baía de Guanabara. É durante esse tempo límbico e nesse território marítimo, flutuante e instável, que D. Maria se entrega a um exercício de memória, examinando os contornos da sua vida passada e, antecipando, num lampejo de lucidez, a solução da peça conhecida desde a primeira fala: “Brasil! [...] Sei que morrerei em teu ventre seco.”

A partir daqui, o monólogo constitui uma meditação interior, que nos revela uma dupla existência, entre o impudor que a verdadeira solidão autoriza e o sóbrio sentido do dever que o exercício, por direito divino, do mais alto magistério público, então exigia. É D. Maria I e é simplesmente Maria quem nos revela o texto da peça e, entre esses dois pólos, são todas as Marias que o nosso imaginário pressente terem coexistido naquela Rainha de Portugal, a primeira do sexo feminino de um país em que não vigorava a Lei Sálica.

Desde a primeira cena e ao longo de toda a peça,D. Maria surge-nos aterrorizada pela tremenda força telúrica que sabe ser a essência do Brasil. Surge-nos também alucinada, invectivando Bonaparte por entre as lancinantes enxaquecas com que “o Diabo lhe comprime o crânio”. Esta exaltação nervosa é tão mais impressionante quanto a fragilidade da velha senhora é acentuada, nesta fase, pelo seu traje: uma combinação interior despojada, muito simples, translúcida, como se a sua alma sensível estivesse à mercê de ser facilmente trespassada por todas as crueldades do mundo. Só naquelas cenas em que a Maria-pessoa cede o protagonismo a D. Maria I-persona é que Maria do Céu Guerra haverá de envergar o manto real, projectando a voz no exercício do poder, decidindo e oficiando por decreto, sem que, ainda assim, o múnus que lhe fora confiado serevel e menos solitário ou dilacerante.

O monólogo é presenciado por uma aia negra, anã, D. Joaninha, encarnada pelo actor Adérito Lopes, a quem D. Maria se dirige muito intimamente, em confidência, várias vezes de modo maternal e carinhoso.Esta contracena encarnada por uma figura muda, hierática, que se movimenta sobre uma cadeira rolante e, ao contrário da monarca, aparece trajada com uma vistosa indumentária de dama da corte, confronta, ao mesmo tempo que conforta,o desamparo de D. Maria. Por vezes, parece dar-se uma inversão de papéis, como quando D. Joaninha, em pose majestática, sentada na sua cadeira como num trono,faz um sinal de cabeça para que seja a própria rainha a apanhar do chão a mantilha negra do luto de D. José. Em outras ocasiões, ela é simplesmente relegada à sua condição de súbdita, - para mais, de outra raça, - que cumpre as ordens para trazer o urinol à Rainha ou para lhe calçar os escarpins.

Maria do Céu Guerra, representando uma rainha que já estava “oficialmente louca” há 16 anos, alterna um olhar esgazeado e um registo de voz que é quase um “uivo de dor” com apontamentos de conversa mais prosaicos – “A bexiga caiu-me primeiro, o reino depois” - num texto intrinsecamente poético, muitas vezes com um tom aforístico definitivo, e de uma cadência rítmica quase-oitocentista.As metáforas, - “Brasil: garganta de hálito escaldante e olhos de sedição” - as aliterações, os jogos de linguagem, a “rima interna” - “Não me tenhas pena.Não me tenhas presa.”, “Os pensamentos que guardei são, para os simples,segredos. Porém, para mim, são degredos, distâncias de não suportar.” – imprimem a esta tragédia beleza, nobilitam-na, induzem a empatia e a compaixão do espectador.

A vigia redonda da embarcação, - na qual se projecta, em tons cinza, ora um mar remanso so sobrevoado por um pássaro que voga, ora uma boneca, evocando a Maria da infância, - com a sua omnipresença central no cenário, funciona como um “óculo” que, em permanência, está de atalaia à Rainha, num escrutínio constante que a não deixa ser “privada”, descansar, ser leve, pueril, irresponsável. Funciona também como um portal, pelo qual o pensamento se evade e a imaginação se liberta, já que “a loucura não é uma porta que se nos fecha, mas muitas janelas que se nos abrem, só que todas ao mesmo tempo”, diz a protagonista.

É neste cenário que o espectador vai conhecendo:a Maria-filha, devota de seu pai, a Maria-mulher num mundo de homens que a desautorizam com o olhar, a Maria-jovem, secretamente apaixonada, que casa contrariada e por “dever de ofício”, a Maria-mãe, extremosa, pungida pela morte do seu idolatrado primogénito, a Maria-sogra... E também: a D. Maria-beata, a D. Maria-aristocrata com consciência de classe, a D. Maria-clemente, a D.Maria-impotente, perante a supremacia política viril dos conselheiros da Corte...E em todos os registos, Maria do Céu Guerra é magistral: juvenil e cheia de cândida admiração pelo pai, ansiosa, fogosa e revoltada quanto ao seu amor proibido, embevecida pela maternidade, desconfiada quanto a Carlota Joaquina e irredutível na defesa da monarquia.

Com efeito, nesta peça, vemos desfilar uma época em que, porventura mais do que em qualquer outra, na Europa, se digladiavam concepções políticas sobre a organização social extremadas: entre os ideais revolucionários de igualdade e a defesa dos privilégios de casta centenários. O espectador pode, assim, recordar “ao vivo”, episódios marcantes da história de Portugal: a demissão e o exílio da Corte do Marquês de Pombal, a libertação dos presos políticos, a reabilitação dos Távoras, todos símbolos de um período inaugurado pelo Reinado de D. Maria que ficou conhecido como “A Viradeira”, num cognome de conotação ambígua, - ou mesmo, negativa, - por ter correspondido também a uma renovada deferência para com o obscurantismo da Igreja.

Mas é no episódio da execução de Tiradentes, na sequência da revolta da “Inconfidência Mineira”, que a loucura lúcida de que D.Maria vai fazendo prova ao longo de toda a peça atinge o seu paroxismo. A maneira como D. Maria constrói Tiradentes, a forma como o idealiza, tentando encontrar-lhe atenuantes para o crime que lhe valerá a morte, fixa definitivamente aos nossos olhos o terno retrato de uma mulher desvalida,terrena, que compreende os sentimentos e as pessoas, para além do exercício do dever na esfera de governação.

Antônio Cunha imagina, num momento muito emotivo, uma D. Maria que vê em Tiradentes uma reencarnação sucessiva das três figuras que a monarca mais amou e por cuja morte se sente responsável: o jovem Távora, primeiro, que “amou uma Princesa que só podia amá-lo em sonhos” e para ele foi “um triste túmulo”, o rei D. José, seu pai, depois, “morto por real vontade de deixar à filha um Reino”, e o seu filho varão, José, por fim, “muito amado, belo e voluntarioso, a quem levou a peste imunda” que à Rainha estava destinada. Tiradentes acabará por ser a quarta morte que pesará até ao fim da vida na atormentada consciência da Rainha, ainda que perante os seus ministros esta tivesse defendido uma pena mais branda para demonstrar que a piedade é um atributo de todos os que estão convictos da sua realeza.

A propósito de D. Maria I, Mário Domingues[1]haveria de escrever que “a sua débil mão de mulher empunhou o ceptro num dos momentos mais difíceis da história nacional.” E se assim foi, talvez esta grandiosa personagem trágica da nossa história comum com o Brasil, tenha,enfim, encontrado nesta interpretação de Maria do Céu Guerra da peça de Antônio Cunha, o delicado e justo “memorial” que a criação artística e, designadamente a dramaturgia, ainda não lhe dedicara.


[1] “D. Maria I e a sua época”, Lisboa, Romano Torres, 1972, p. 7.

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