quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

D.Maria a Louca na Barraca

D. Maria não foi a única cabeça coroada a perder a razão em Portugal. Mas foi a primeira mulher a reinar nosso país. E isto faz dela talvez uma das mais martirizadas e comoventes figuras da nossa História.
Entalada entre uma Igreja a querer recuperar depressa dos danos causados pelo rei D José e uma obediência que ela desejava que fosse absoluta à memória do pai, a melancólica e piedosa rainha sucumbia de hesitação. Abalada por uma sucessão de mortes que ceifou filhos, pais, netos, marido, e o primeiro e tranquilizante confessor Arcebispo de Tessalónica, que lhe pacificava os temores religiosos, Maria viu-se entregue a um sem número de pressões a que não resistiu.
Praticamente fechada em Queluz entre 1792, data em que à saída de um Teatro em Salvaterra de Magos, se tornou publica a sua insanidade, e 1807 data em que a Corte Portuguesa foi para o Brasil, a pobre rainha deslocava-se apenas de Convento para Convento numa carruagem onde uma sonora guizalhada aí colocada para o efeito, lhe ocultava os gritos e os protestos. Frequentemente era instada a assinar despachos de que discordava ou que, pelo menos, não tinha a certeza de querer assinar. Até que ao passar a regência do reino para o príncipe D. João seu filho, pode finalmente entregar-se à sua dor.
Hereditariedade, consanguinidade, remorso, pressão religiosa, desgosto, perda…muitas são as causas atribuídas à “loucura” de Dona Maria. Ultimamente levanta-se a hipótese de envenenamento devido à prolongada inspiração de elementos tóxicos como bismuto e arsénico, existentes no papel em que trabalhava. Digo trabalhava porque D. Maria reinou de facto e no seu gabinete do Carmelo, pequeno Convento contíguo à sua Basílica da Estrela, tentou sem êxito mas com boa-fé, principalmente no campo da educação e da ciência, equilibrar a herança racionalista de seu pai com o beatério que a igreja lhe impunha a troco de lhe salvar a alma. Enquanto ia enlouquecendo devagar pensa-se que a Rainha falante discorria bem, mas sentia mal. O seu desequilíbrio, principalmente emocional, era parecido com o de Jorge III de Inglaterra, que acabou por morrer de síncope depois de ter falado ininterruptamente dois dias seguidos. Por isso o regente e o embaixador português em Inglaterra trouxeram a Portugal o proto-psicanalista Dr.Willis que obtivera melhoras assinaláveis no tratamento do rei inglês. Impossibilitado pela corte de levar D. Maria para a sua quinta terapêutica o clínico abandonou o Palácio das Necessidades onde esteve hospedado e regressou a Londres.
Por todo o país se organizaram procissões pelas melhoras da Rainha.

E agora partamos para a peça a estrear na Barraca no dia 20 de Julho próximo.
O autor António Cunha, de Santa Catarina no Brasil, trabalhou em parceria com a historiadora Ivonete da Silva Sousa na pesquisa histórica sobre D. Maria I e o seu tempo e no tema da loucura. Apoiados essencialmente no pensamento de Michel Foucault.
E criou uma heroína, heroína bufa por vezes, mas sempre grandiosa, na euforia ou na dor.
Cruzando espaços e tempos a história da Rainha louca desenvolve-se em quatro momentos: o casamento com o velho tio D. Pedro que a fez abdicar de um mais verdadeiro e juvenil amor, a morte do pai D. José cujo trono virá a ocupar, a morte do filho que esperava que viesse a ser o rei e morreu de peste por não ter sido vacinado a conselho religioso. Todas estas perdas e falhas vêm a ganhar substância na morte de Tiradentes cuja execução, pressionada, ela acaba por assinar.
Estamos na baía de Guanabara. Dona Maria não desembarcou com a restante corte. Tinha feito demasiados “desacatos” no embarque para que o filho D. João, quisesse apresentá-la a seu lado e correr o risco de tornar ainda mais patético aquela chegada.
D. Maria I espera no barco com a sua aia dona Joaninha, que as venham buscar.
Um dia? Uma noite? Dois dias? Uma longa noite? Em qualquer caso uma vida.

Passo a citar o autor Antonio Cunha “o texto, em forma de monólogo, desenvolve-se a partir desse momento crucial. Aos 74 anos, a velha soberana aporta em terras tão longínquas quanto para si estranhas. (…) A visão dantesca do Brasil que Dona Maria constrói a partir da janela do seu camarote remonta à visão dos primeiros colonizadores, e que, resguardada a distância dos 300 anos que os separam, pouco mesmo teria evoluído. Presa na teia das concepções em voga, Dona Maria, por vezes, enquadra o Brasil que está à sua frente nas mesmas categorias que utilizam os seus contemporâneos para a ela mesma enquadrar. Dona Maria vê estranheza, desordem, insanidade diante de si, da mesma forma como vêm os seus súbditos quando diante dela. Para Dona Maria “a louca”, o mundo que ora se lhe apresenta é instigantemente “louco”. Neste cenário onde, solitária e distante das regras que permeiam a sua condição de monarca, espectadora privilegiada e ao mesmo tempo personagem principal, Dona Maria revisita a sua própria vida – e aqui o texto busca destacar factos que considerou mais relevantes na sua historiografia (…) A acção dramática está centrada no movimento pendular, em que se alternam e se confundem lembranças do passado ao inusitado presente, fruto do que poderíamos chamar de disponibilidade mental, emocional e espiritual da nossa personagem. Por assim dizer, a “loucura” de Dona Maria permitiu-nos alçar voos, possibilitou-nos licenças poéticas. Na obra de Michel Foucault, “História da Loucura”, buscamos suporte teórico para desenvolver o perfil psicológico de Dona Maria, que nada mais é do que o perfil daquela sociedade alucinada e temerosa diante das mudanças que se impunham impiedosas…”

Maria do Céu Guerra

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